Autor Mensagem
Pádua Fernandes
MensagemEnviada: Sex Ago 08, 2008 5:52 pm    Assunto:

André Tezza escreveu:

Ambos os argumentos são de Adorno e não meus e, portanto, se há contradição, ela está no filosófo e não nas minhas palavras.


Prezado André,
desculpe-me não ter lido antes sua resposta (nem ter visitado o Presto). estou tentando dar conta de uns relatórios e pareceres.
Entendi agora o que escreveu; antes, eu achei que você estava corroborando o Adorno.
Mas não entendo por que você chama de totalitária essa postura do Adorno; para mim, ela é autoritária, o que é significativamente diferente.
(berber)
MensagemEnviada: Sex Ago 08, 2008 2:06 pm    Assunto:

Que interessante essa discussao, nao?

Gostei de muitos comentarios aqui, e muitos deles dariam topicos individuais.

Alguns comentarios bem rapidos para nao desviar muito a discussao:

Existem, a meu ver, 3 maneiras de se ouvir(apreciar) uma musica.
1 - tentar escutar a intencao do compositor Tipo: O que Beethoven queria com essa modulacao aqui?

2 - Ouvir a perfeicao da interpretacao: Tipo Nossa como ela toca bem essa passagem, nao?

3 - Ouvir a estrutura da obra em si.

Todas sao validas e o valor de cada uma depende de cada ouvinte, por exemplo, quando estou julgando um concurso, tenho que focalizar na perfeicao da interpretacao. Quandovou a um concerto, me permito passear entre a execucao e a intencao do compositor, e por ai vai.

Quanto a instrumentos super-valorizados, acho isso normal. A "fama" muitas vezes se sobrepoe ao valor (se bem que valor tambem e' um conceito individual) e isso acontece em todo lugar.

Se alguem toca uma valsinha no estilo classico, muita gente vai dizer: "Interessante" ou "que bonitinha", etc. Agora se disserem que a musica foi composta por Beethoven, muita gente vai achar chifre em cabeca de cavalo e analisar todas as supostas intencoes psicologicas e sociais da valsinha.

Nunca esqueco do Marlos Nobre, que disse que uma vez um critico foi analisar uma musica dele. nessa musica, ele usou sons da linguagem de uma tribo indigena como materia prima. O critico se desfez em analogias, dizendo que podia se ouvir o espirito "amazonico" e uma "brasilidade" na musica, etc. Quando na verdade foi uma musica mais serial. Ou seja so' porque foi composta por Marlos Nobre, a musica deveria ser nacionalista, com tempero amazonico , etc...

Enfim, a musica classica tambem tem os seus "rockstars" e o marketing e' que vai colocando artistas nas capas de CD ao inves de compositores - o que eu acho muito natural e saudavel para o mercado.
Paulo Egídio
MensagemEnviada: Qui Jul 24, 2008 9:31 am    Assunto:

André Tezza escreveu:
Paulo,

Não sou um expert em música contemporânea não... Sempre tive um interesse, mas também sempre a entendi como uma obra aberta, sujeita a muitas formas de compreensão. Nunca consegui chegar a uma conclusão do que é e de como devemos ouvir esta música - é a mesma sensação que tenho com a arte conceitual contemporânea nos museus... Cada vez me convence menos, mas sempre há exceção, não?

Não estava neste concerto - uma pena. Mas sei que, ao vivo, a música contemporânea é muito diferente e é mais fácil se apaixonar por ela. Mesmo assim, creio que nunca serei apaixonado por esta música da mesma forma de que gosto, por exemplo, de Bach.

Gosto demais de Gidon Kremer, de sua postura como músico. E penso que ele, apesar de gostar dos contemporâneos, pensa diferente deles, uma vez que não insiste em verdades, progressos harmônicos ou superioridades da música de vanguarda do século XX. Ele também toca, or exemplo, Piazzola, não é isto?


Tezza, eu creio que nossa visão de música pós 1950/contemporânea é bem parecida.

O Parisii foi fabuloso. Tive a sorte de já ter assistido umas 6 ou 7 vezes na vida o quarteto de Debussy, mas a impressão que tenho é que nunca o tinha assistido até vê-los tocando...

E o Kremer tem destas coisas: é fã de jazz e toca Schumann, Piazzolla, uma obra ultra-contemporânea russa e uma brincadeira no estilo vienense, tudo no mesmo concerto. Dentro do que você colocou sobre o pensamento de que a música - os compositores - buscou se libertar do gosto pequeno-burguês, eu acho que ele ocupa todos os espaços: diverte os menos interessados e desafia os mais interessados, agrada a ambos. E sempre com bom gosto.

Ah, lembrei, sobre violinos: Em um DVD chamado "The Art of Violin", Ivry Gitlis, grande violinista ainda na ativa aos quase 86 anos, fala de seu Stradivari: "Tenho um violino que nasceu em 1713. Na verdade não é justo dizer que ele é meu: Eu sou mais um violinista que passa na sua vida. Ele estava aqui muito antes de mim, e espero que sobreviva muitos anos a mim."

Eu acho que o pensamento dele justifica um pouco da mística em torno destes instrumentos... embora não o preço!

Um abraço.
André Tezza
MensagemEnviada: Qua Jul 23, 2008 11:15 am    Assunto:

Paulo,

Não sou um expert em música contemporânea não... Sempre tive um interesse, mas também sempre a entendi como uma obra aberta, sujeita a muitas formas de compreensão. Nunca consegui chegar a uma conclusão do que é e de como devemos ouvir esta música - é a mesma sensação que tenho com a arte conceitual contemporânea nos museus... Cada vez me convence menos, mas sempre há exceção, não?

Não estava neste concerto - uma pena. Mas sei que, ao vivo, a música contemporânea é muito diferente e é mais fácil se apaixonar por ela. Mesmo assim, creio que nunca serei apaixonado por esta música da mesma forma de que gosto, por exemplo, de Bach.

Gosto demais de Gidon Kremer, de sua postura como músico. E penso que ele, apesar de gostar dos contemporâneos, pensa diferente deles, uma vez que não insiste em verdades, progressos harmônicos ou superioridades da música de vanguarda do século XX. Ele também toca, or exemplo, Piazzola, não é isto?
André Tezza
MensagemEnviada: Qua Jul 23, 2008 11:06 am    Assunto:

Pádua, vamos voltar ao que você escreveu sobre a contradição:


"(...) Então, de um lado, você baseia seu argumento numa crítica à má audição, fetichizada, da música. Por outro, o que me parece uma contradição, você invoca outro argumento, "Quantos ouvidos no mundo conseguem perceber a diferença entre um excelente violino e um Stradivarius?", que tem por pressuposto o não precisarmos ouvir tão bem assim - já que nossos ouvidos não são muito bons mesmo, não faria tanta diferença o violino usado. "


Ambos os argumentos são de Adorno e não meus e, portanto, se há contradição, ela está no filosófo e não nas minhas palavras. O que tentei mostrar é que os argumentos não são conflitantes, uma vez que, para Adorno, a boa audição passa longe em perceber a diferença de um Stradivarius. Isto é: ambos os exemplos são de audição ruim - não há contradição. Adorno só foi irônico na questão do número de ouvintes.

Quanto ao Jazz, claro, Adorno não era um perseguidor de negros ou judeus. Mas há um ponto em comum com o totalitarismo sim, que justifica uma crítica ao jazz. Há um pensador de sociedade de consumo de que gosto muito, Don Slater, que faz uma belíssima crítica à Escola de Frankfurt. Muito resumidamente, o que ele diz é o seguinte: quando o discurso crítico da modernidade, como a Escola de Frankfurt, proclama ser autoridade em relação às necessidades das pessoas e, além disso, quando procura "legitimar a autoridade de seu conhecimento das necessidades por meio da ciência, da razão ou da verdade, pode-se constituir ele mesmo uma forma particularmente insidiosa de poder social totalitário: o Estado, o sistema de bem-estar ou os serviços de saúde, a economia de comando que afirma conhecer as necessidades reais de seus cidadãos melhor do que eles, e com uma base científica, é antidemocrática no sentido mais ameaçador possível e tem o poder social de impor suas definições de necessidades ao indivíduo na vida cotidiana prática".

Ora, proibir o jazz das rádios, o que Adorno apoiou, é exatamente isto: presumir de antemão o que são as necessidades artísticas das pessoas e, a partir disso, tomar atitudes de coerção e probição. Exatamente o que os nazistas faziam - é totalitarismo puro.
Paulo Egídio
MensagemEnviada: Qua Jul 23, 2008 8:59 am    Assunto:

André Tezza escreveu:
Paulo, salve!

Eu penso que a preocupação principal, para Adorno, era a de desvincular questões superficiais do cerne da arte. Claro que um grande intérprete é um gênio musical, mas estamos na época em que os maestros e intérpretes estão nas capas dos CDs e não os compositores e isto parece ser, no mínimo, bizarro do ponto de vista musical - ainda que absolutamente justificável do ponto de vista comercial.

Talvez, num ponto médio imaginário, estejamos todos de acordo: há especulação em excesso, cobertura exagerada da imprensa sobre bobagens, status e celebridades envolvidas, mas um Stradivarius certamente não é uma fraude, mas sim um grande violino.

Repondendo a bela pergunta do Paulo (deixar a compreensão analítica, como a principal questão para o entendimento da música, não é um modo eletista de se relacionar com ela?), eu diria que, nos moldes de Adorno, sim, é eletista e é também problemática. De certo modo, é este argumento, este que ilumina a harmonia como a chave de hierarquia dos sons, que justifica toda a aspiração de suposta superioridade da música erudita sobre as demais formas musicais. Como se uma grande proposta harmônica tivesse mais valor que, por exemplo, a improvisação, que explica toda a beleza e dificuldade do jazz - o que me parece equivocado e preconceituoso.

E, além de eletista, é problemática porque levou à música uma abstração intelectual pura, de grande qualidade racional, mas de qualidade artística que, hoje, já julgo como discutível. Cada vez estou menos paciente com a arte do século XX que procurou defender teses - isto é típico da universidade, da academia, mas não da arte - pelo menos não da maior parte da história da arte. E se antes era um ouvinte do Boulez, hoje, sinceramente, estou longe de ser fã (o Colarusso que não me escute...).

André


Pois é, carísismo,

O Zpino falou em desdobramentos, bom, seu post tem inúmeros desdobramentos para mim!

Quando li seu comentário sobre intérpretes na capa do CD, me veio à mente os discos de vinil dos anos 70, com Salvatore Accardo tocando Paganini sob a regência de Dutoit. Paganini pode nem ser exemplo de compositor se se quer falar no nível mais elevado da Arte Musical, mas é curioso pensar que, naqueles discos, haviam reproduções de pinturas de Paganini na capa e, pequenino no canto inferior esquerdo, fotos de Accardo. Lembremo-nos que Nicoló foi antes de tudo intérprete e caímos no seu argumento mas, enfim, ele está lá por ter escrito aqueles concertos.

Também lembrei que, quando Boulez grava algo regendo, é comum *ele* ir para a capa do CD. Smile

Seu comentário sobre o jazz também me fez pensar, porque no fundo a valorização (óbvia e necessária) da improvisação no jazz evidencia a parceria entre compositor e intérprete na execução da obra. Estaria havendo a transferência desta parceria para a música erudita num, digamos, equivocado empréstimo estético?

Outra, pensando novamente em instrumentos: Deixando de lado a especulação de preço sobre violinos - que, aliás, não é só sobre violinos: Por que diabos um quadro pode valer U$ 100,000,000.00???? - e se concentrando em algumas peças: Alguns detestam a interpretação do Heifetz pro concerto de Mendelssohn, outros amam. Mas, objetivamente, cada vez que o tio Jascha tocou este concerto no seu violino habitual (um Guarneri del Gesú de 1742), ele apresentou o concerto no mesmo violino que foi usado na estréia do concerto, porque este Guarneri pertenceu a Ferdinand David. Dá pra fazer uma matéria de jornal absolutamente cafona e pseudo-erudita, ou pseudo-intelectual, a respeito disto, falando da transferência de energia do instrumento através dos séculos, etc., e deve ter sido feito muitas vezes. Mas também poderia ter saído uma positiva matéria a partir desta curiosidade, levando algum desavisado a querer prestar mais atenção numa execução de um concerto, muito bonito e bem escrito, que a pessoa ainda não gostasse tanto (compadre Amancio, esta foi pra ti!).

Outra, sobre instrumentos e valorizando-os, bem como a interpretação: Qual a importância de se executar obras em instrumentos de época? Que interesse haveria em se tocar as sonatas de Beethoven com um modelo de piano idêntico àquele no qual ele compôs *aquela* sonata, ou Vivaldi num violino idêntico aos usados por ele (xi, vou abrir o guarda-chuva pra me proteger das pedradas...)? Neste mundo no qual a obra é tudo e a execução tem, digamos, caráter secundário, tanto pode se argumentar que quanto mais "pura" uma interpretação, melhor, quanto que não existe interpretação "pura", então vale tudo. Sem querer radicalizar o "tudo", isto me leva a refletir sobre a influência de Boulez sobre muitos executantes, conscientes eles disto ou não.

Minha grande experiência ao vivo com Boulez foi um "livre pour quatour" do quarteto Parisii há dois anos, no Guairinha (você estava lá?). Como violinista que sou, foi uma coisa fabulosa tê-los assistido. Eu creio que jamais estarei no nível de executar uma obra daquelas e, mesmo que chegue ao nível, não sei se terei um conjunto que possa fazê-lo.

Mas assistir este concerto me abriu a mente pra outras coisas: O quinteto com clarinete de Mozart na segunda parte foi tocado com uma sonoridade única. Não parecia Mozart em alguns momentos, mas não era menos belo por causa disto. Cheirava a música moderna pela escolha de timbres, fusão de sonoridades, leveza. E, no final, eu tinha certeza que, se eles não tivessem se aprofundado tanto nesta música "racional", "fria", do século XX, jamais teria saído um Mozart tão original e fabuloso.

Tudo que escrevi nos dois últimos parágrafos resume o que penso atualmente sobre a música do século XX. É óbvio que ela é estranha em muitas coisas, e você a conhece muitíssimo melhor que eu. Mas, como intérprete, posso afirmar que ela abriu nossas cabeças pra reinventar a beleza do passado, pintá-la com novas tintas. Como eu conversei uma vez com o sr. Gripp: O Gidon Kremer não teria interpretações tão geniais da música "velha" se não fosse um absoluto entusiasta da música "nova". E fã de jazz... o que me leva a um parágrafo anterior.

Caro Tezza, talvez hajam muitas virtudes naquele ponto médio. Smile

Abraço.
Pádua Fernandes
MensagemEnviada: Ter Jul 22, 2008 9:49 pm    Assunto:

André Tezza escreveu:
Pádua,

Legal os seus comentários - faz com que eu tenha que refinar os meus!

Primeiro, uma interpretação: creio que o objetivo de Adorno, na questão de "quantos ouvidos sabem diferenciar um Stradivarius", não é contraditório. Creio que Adorno não defendia que todos devem ter um ouvido suficiente para diferenciar um violino - para ele, isto era secundário, o importante é a obra, não o intérprete e muito menos o instrumento.


Desculpe, não me fiz claro: tentei dizer que a sua mensagem era contraditória, e não o Adorno.
Quanto ao gosto musical de Adorno, com que não temos que concordar mesmo se usamos seu aparato teórico, os motivos que o faziam desprezar o jazz eram diferentes daqueles dos nazistas...
Pádua Fernandes
MensagemEnviada: Ter Jul 22, 2008 9:42 pm    Assunto:

Paulo Egídio escreveu:
Eu posso, independente das minhas limitações, executar melhor uma música se possuo um instrumento melhor. O Tezza - que é um cara que eu admiro - escreve que "Para Adorno, ouvir bem não é uma propriedade física (da capacidade biológica do ouvido), nem é uma questão fetichista (priorizar o suporte sobre a música), mas sobretudo a capacidade analítica de compreensão, tão ao gosto alemão".

Mas será que executar bem uma música não tem nenhum valor? Querer tocar bem é um fetiche? Ou fetiche é apenas o exagero do preço dos Stradivaris? Poucas pessoas conseguem de fato distinguir a superioridade de alguns violinos sobre outros, mas quantos conseguem apreciar a música *apenas* pela "capacidade analítica de compreensão", sem o veículo de uma interpretação bem executada? Este pensamento não é elitista, tanto quanto possuir um Stradivari?


De fato, Paulo Egídio. Ademais, executar bem a música também exige essa capacidade analítica...
André Tezza
MensagemEnviada: Ter Jul 22, 2008 9:29 pm    Assunto:

Paulo, salve!

Eu penso que a preocupação principal, para Adorno, era a de desvincular questões superficiais do cerne da arte. Claro que um grande intérprete é um gênio musical, mas estamos na época em que os maestros e intérpretes estão nas capas dos CDs e não os compositores e isto parece ser, no mínimo, bizarro do ponto de vista musical - ainda que absolutamente justificável do ponto de vista comercial.

Talvez, num ponto médio imaginário, estejamos todos de acordo: há especulação em excesso, cobertura exagerada da imprensa sobre bobagens, status e celebridades envolvidas, mas um Stradivarius certamente não é uma fraude, mas sim um grande violino.

Repondendo a bela pergunta do Paulo (deixar a compreensão analítica, como a principal questão para o entendimento da música, não é um modo eletista de se relacionar com ela?), eu diria que, nos moldes de Adorno, sim, é eletista e é também problemática. De certo modo, é este argumento, este que ilumina a harmonia como a chave de hierarquia dos sons, que justifica toda a aspiração de suposta superioridade da música erudita sobre as demais formas musicais. Como se uma grande proposta harmônica tivesse mais valor que, por exemplo, a improvisação, que explica toda a beleza e dificuldade do jazz - o que me parece equivocado e preconceituoso.

E, além de eletista, é problemática porque levou à música uma abstração intelectual pura, de grande qualidade racional, mas de qualidade artística que, hoje, já julgo como discutível. Cada vez estou menos paciente com a arte do século XX que procurou defender teses - isto é típico da universidade, da academia, mas não da arte - pelo menos não da maior parte da história da arte. E se antes era um ouvinte do Boulez, hoje, sinceramente, estou longe de ser fã (o Colarusso que não me escute...).

De qualquer modo, reitero que tenho, em geral, grande antipatia por Adorno. Acho que já deu para perceber...

Grande abraço,
André
ZpinoZ
MensagemEnviada: Ter Jul 22, 2008 6:36 pm    Assunto:

Paulo Egídio escreveu:
Poucas pessoas conseguem de fato distinguir a superioridade de alguns violinos sobre outros, mas quantos conseguem apreciar a música *apenas* pela "capacidade analítica de compreensão", sem o veículo de uma interpretação bem executada? Este pensamento não é elitista, tanto quanto possuir um Stradivari?

Interessante esse desdobramento proposto pelo Paulo Egídio.

Efetivamente é uma utopia pensar que a fluição e valoração da Música Clássica possa ser uma coisa simples, dados os multiplos níveis e camadas que envolvem o fenômeno de uma execução, qualquer que seja o approach.

Z
Paulo Egídio
MensagemEnviada: Ter Jul 22, 2008 1:29 pm    Assunto:

Independente da discussão fetichista, a super-valorização de alguns violinos antigos - não só Stradivari e Guarneri del Gesu - é recente e decorre da especulação extra-musical. Não foram os músicos que extrapolaram o preço dos seus instrumentos. Ainda nos anos 70 os músicos eram capazes de pagar por eles, e hoje a maioria pertence a bancos. Claro que as grandes casas de venda acompanham o preço, mas a culpa não é delas.

O valor de algo, diz uma versão talvez meio distorcida de capitalismo, é aquele que as pessoas estão dispostas a pagar. Há mais virtuoses hoje do que violinos italianos do século XVIII, então seria natural que os preços subissem um pouco. Mas tem instrumentos que no início do século XX eram considerados de terceira linha e hoje valem seus 50.000 euros. Ou seja, o nível da especulação superou há muito as raias do abuso.

Só que, como instrumentista, eu sei a diferença que faz entre tocar num violino de R$ 400,00 e num de U$ 10,000.00 (lidando com valores "normais"). Eu posso, independente das minhas limitações, executar melhor uma música se possuo um instrumento melhor. O Tezza - que é um cara que eu admiro - escreve que "Para Adorno, ouvir bem não é uma propriedade física (da capacidade biológica do ouvido), nem é uma questão fetichista (priorizar o suporte sobre a música), mas sobretudo a capacidade analítica de compreensão, tão ao gosto alemão".

Mas será que executar bem uma música não tem nenhum valor? Querer tocar bem é um fetiche? Ou fetiche é apenas o exagero do preço dos Stradivaris? Poucas pessoas conseguem de fato distinguir a superioridade de alguns violinos sobre outros, mas quantos conseguem apreciar a música *apenas* pela "capacidade analítica de compreensão", sem o veículo de uma interpretação bem executada? Este pensamento não é elitista, tanto quanto possuir um Stradivari?
André Tezza
MensagemEnviada: Seg Jul 21, 2008 11:16 am    Assunto:

Pádua,

Legal os seus comentários - faz com que eu tenha que refinar os meus!

Primeiro, uma interpretação: creio que o objetivo de Adorno, na questão de "quantos ouvidos sabem diferenciar um Stradivarius", não é contraditório. Creio que Adorno não defendia que todos devem ter um ouvido suficiente para diferenciar um violino - para ele, isto era secundário, o importante é a obra, não o intérprete e muito menos o instrumento. Em outras palavras: ninguém precisa ter um ouvido absoluto para entender música. Para Adorno, ouvir bem não é uma propriedade física (da capacidade biológica do ouvido), nem é uma questão fetichista (priorizar o suporte sobre a música), mas sobretudo a capacidade analítica de compreensão, tão ao gosto alemão. E tão problemático também, porque isto fez com que a harmonia fosse a grande questão para a música erudita do século XX, o que levou a um beco sem saída... Mas isto é outra história, para outro post...

E, mesmo não sendo um suporte repetível, como na linha de montagem que geralmente caracteriza a Indústria Cultural, creio que o fetiche existe de uma forma não tão diferente assim das jóias de Madonna. Porque é a valorização do capital, do valor de troca sobre o valor de uso.

De qualquer modo, ainda que nesta questão em particular goste de pensar como Adorno, que um Stradivarius não é tão importante assim para a música erudita, de resto, tenho grandes divergências. Mês passado, terminei de ler "Nos passos de Hannah Arendt", de Laure Adler, e há muitas passagens que explicam porque Arendt não ia com a cara de Adorno. Em uma delas, que me parece bastante relevante, Adler explica que Adorno foi a favor da proibição do jazz nas rádios alemãs - lei de Goebbels... Não fosse judeu, creio que Adorno não estaria tão longe assim de Heidegger durante o nazismo...

Abração,
André
Pádua Fernandes
MensagemEnviada: Dom Jul 20, 2008 12:49 am    Assunto:

André Tezza inscreveu-se no Presto - bem-vindo.
Adorno! Engraçado, acabei de fechar um livro e usei-o, inesperadamente para mim, como epígrafe - da Minima Moralia.
Entendo o que você escreve - a música deixa de ser um fim, para ser um meio nesse fetichismo. Lembro desta passagem da Filosofia da nova música:

Depois de meados do século XIX, a grande música recusou ser um meio. Pelo rigor de sua evolução, a música entrou em contradição com os desejos manipulados e auto-suficientes do público burguês. O pequeno número de conhecedores era substituído pela multidão dos que podiam pagar um lugar e queriam provar aos outros o alto nível de sua cultura.

Mas deixe-me pensar sobre o que você escreveu: o suporte, neste caso, não é repetível, e o que o torna único (suas propriedades sonoras) está diretamente ligado aos valores musicais.
Caso bem diverso, creio, seriam comentários da imprensa a respeito de eventuais brilhantes cravejados na guitarra de Madonna, pois eles não melhorariam o som e, mesmo que o fizessem, isso não faria diferença alguma para o desempenho artístico da cantora. E, mesmo que fizesse diferença para esse desempenho, o público da celebridade não ligaria, mais impressionado com a rotina de exercícios físicos da estrela pop, que chegou aos cinqüenta em boa forma... física.
Então, de um lado, você baseia seu argumento numa crítica à má audição, fetichizada, da música. Por outro, o que me parece uma contradição, você invoca outro argumento, "Quantos ouvidos no mundo conseguem perceber a diferença entre um excelente violino e um Stradivarius?", que tem por pressuposto o não precisarmos ouvir tão bem assim - já que nossos ouvidos não são muito bons mesmo, não faria tanta diferença o violino usado.
Desta forma, fico com as seguintes indagações: devemos ouvir bem? Parece-me que sim, se não estamos no campo da escuta funcional... E o Stradivarius, faz diferença? Você acha que não, eu, na verdade, não sei, pois não entendo nada a respeito - mas imagino que sim, devido à cobiça dos violinistas pelo instrumento. O que posso responder, com toda certeza, é que não posso comprar um...
André Tezza
MensagemEnviada: Qui Jul 17, 2008 9:52 am    Assunto:

Cada vez sou menos fã de Adorno, mas há uma questão levantada em "O Fetichismo na Música e a Regressão Auditiva" que me parece relevante. As pessoas, a imprensa em especial, comentam mais o "valor" de um Stradivarius que o "valor" de uma música, de um compositor, de um intérprete. Quantos ouvidos no mundo conseguem perceber a diferença entre um excelente violino e um Stradivarius? Além disso, um instrumento vale, de fato, mais de um milhão de dólares? Não é um equívoco do nosso tempo sobrevalorizar o suporte sobre o conteúdo?
Pádua Fernandes
MensagemEnviada: Qui Jul 17, 2008 12:45 am    Assunto:

Entendi a explicação de Amancio, trata-se do mesmo princípio das zonas erógenas.

Powered by phpBB © 2001,2002 phpBB Group
Theme created by Vjacheslav Trushkin